Tomb of Ramesses VI, 1137 B C |
Existe uma grande diferença na visão das religiões que creem na reencarnação, e as religiões cuja visão de pós-vida é a de renascimento, como é o caso das crenças religiosas do Egito Antigo. De maneira largamente resumida, a reencarnação envolve o retorno do espírito para a Terra, em um novo corpo que passará por experiências particulares à sua nova jornada, enquanto o renascimento ocorre somente uma vez - a alma renasce para a eternidade, e não volta a "encarnar" para viver como um outro humano.
Ou seja, a imortalidade na visão egípcia não consistia em retornar várias vezes para a Terra, e sim transicionar para uma vida eterna como um espírito luminoso, um Akh (plural Akhu), ao lado dos Deuses, no Campo de Juncos. Já exploramos o tema nesse texto sobre o Duat e o Sekhet-Aaru, que recomendo a leitura para quem gostaria de maiores informações sobre esses planos espirituais e o processo do desencarne na religiosidade kemética.
Inicialmente, o pensamento religioso egípcio os levava a acreditar que assim como Ra renasce diariamente nos céus, seu corpo físico (o khat) acordaria novamente após completar a jornada pelo submundo, e essa noção ficou fortemente inserida no imaginário popular como se todos os egípcios achassem que as múmias reviveriam e se levantariam de suas tumbas em dado momento. Entretanto, com o passar do tempo, os antigos egípcios puderam observar que os corpos dos falecidos não despertavam, somente se decompunham mais e mais, e assim compreenderam que os restos dos falecidos serviam apenas como um receptáculo para seu espírito, que não necessariamente seria reanimado.
Sendo assim, é importante discernir que em meu entendimento tendo como base diversas fontes de pesquisa, o Kemetismo enquanto religião não se concilia tradicionalmente com questões relacionadas a reencarnações, vidas passadas, registros akáshicos ou crenças afins, que pressupõem a reencarnação do espírito, ou essa possibilidade da alma se destacar do corpo no desencarne e posteriormente habitar um novo receptáculo material.
Os Akhu podem frequentar a Terra eternamente após serem julgados dignos no Salão de Ma'at e renascerem nos Campos de Juncos, e além de visitar os locais que desejarem na superfície, podem também interferir nos assuntos mundanos, e se comunicar com seres humanos, Netjeru e outras entidades. Entretanto, não passarão por uma nova vida no plano material (nem como humanos, nem como animais ou outras manifestações quaisquer!). Isso não significa que a crença na reencarnação seja completamente incompatível em uma perspectiva moderna, mas que não há um embasamento para isso em mitos e crenças egípcias originais.
Os conceitos chave para compreender o além numa perspectiva kemética são "renascimento" e "transfiguração", ideias complementares que abordam o aspecto biomórfico e espacial do pós vida, respectivamente. O embalsamento, por exemplo, era uma prática funerária que se destinava não apenas a preservar os restos mortais, mas principalmente a transfigurar o corpo do falecido em um corpo "preenchido de magia" (Assmann 1969, p. 196), a múmia tornando-se assim um receptáculo sagrado para o espírito luminoso (Akh) que ascende aos céus.
Há outras atribuições simbólicas que ocorrem na transição da vida para a morte, com o despertar para a vida eterna estando fortemente interligado com a ideia da ascensão para o céu, que no Egito era concebido como uma divindade feminina, Nut, a manifestação da Grande Mãe. Um aspecto central que ressalta essa crença é o imaginário popular egípcio em que os falecidos eram tidos como filhos da Mãe-de-todos - uma relação que só podia ser alcançada na morte, quando o falecido se integrava à Deusa, tornando-se uma estrela no corpo de Nut, o céu noturno. Sendo assim, o sarcófago que envolve o falecido é simbólico do útero.
O conceito de renascimento permanece muito visível, como em inscrições nos sarcófagos em que Nut diz ao falecido: "Eu te nutrirei/carregarei novamente, rejuvenescido" (veja mais exemplos em Rusch, 1922). Em um desses textos, ela diz: "Eu nunca te darei à luz" (Schott
1965, 81-87), indicando explicitamente que a intenção não era o retorno da alma para a vida material, mas a permanência em Nut, o céu, como um espírito transfigurado e luminoso.
De acordo com as crenças keméticas de corpo e alma (que você pode ler em detalhes aqui), o processo de morte gera uma dissociação dos elementos essenciais que compõem o ser humano, dentre eles o Ka e o Ba, que são espíritos nutridores de vida, o Khat (corpo físico) passa a se deteriorar, a sombra deixa de estar atrelada ao corpo e precisa ser recuperada, o Ren (nome) fica fragilizado e dependente das inscrições físicas, dentre outros conceitos que precisavam ser reunidos magicamente ao falecido por meio do ritual da Abertura da Boca na entrada da tumba. Após desperto, o Akh (espírito luminoso transfigurado) tem liberdade de transitar no plano material e no plano espiritual, mas não retorna à vida em outro corpo, permanece sendo um espírito.
Alguns elementos constitutivos do indivíduo sobrevivem após a transfiguração, e são cinco: o nome (Ren), a sombra (Sheut), a magia (Heka), e os já referidos Ka (força vital) e Ba (personalidade/caráter). As Máximas de Any sugerem que se deve "satisfazer o Akh, fazer o que ele deseja, e se abster de abominações para ele, para que esteja livre de seus males", ou seja, os Ancestrais podem interferir como quiserem no plano material, e possuem meios de julgar as atitudes dos vivos. Muitas cartas foram recuperadas em tumbas pelos arqueólogos, que atestam os pedidos de intervenção de pessoas para seus Akhu, pois consideravam que eles estavam mais próximos dos Deuses e tinham poder de atuação nos assuntos mundanos. Ou seja, o Akh permanece no plano divino, e somente retorna à terra na forma de espírito, nunca encarnado em outro indivíduo.
A rememoração e as posteriores celebrações, festivais, rituais e banquetes realizados em nome dos Ancestrais em diversos períodos do ano, garantiam um pós-vida de sucesso para os falecidos, e as bênçãos de prosperidade na existência material dos que permanecem vivos.
Referências
• The Egyptian Ways of Death - Lynn Meskell em Archeological Papers of the American Anthropological Association 10 (1), 27-40, 2001
• Death and Initiation of Ancient Egypt - Jan Assmann em Religion and Philosophy in Ancient Egypt, Yale Egyptological Studies 3, 1989, S. 135-159
A contemplar o anoitecer,
Alannyë Daeris
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