segunda-feira, 27 de março de 2023

Muuet - Os espíritos falecidos hostis no Kemetismo

   Quando falamos em pós-vida no Egito Antigo, imediatamente nos remetemos ao conhecidíssimo processo de julgamento presidido por Anúbis e Thoth, diante dos 42 Juízes. Nele, os espíritos dos indignos e injustos são obliterados por Ammit. Entretanto, nem todos os espíritos se dirigem ao Salão das Duas Verdades para seu julgamento após a morte; aqueles que por ventura se esquivam da pesagem do coração, acabam se tornando muuet, e não podem se tornar akhu, os espíritos transfigurados e abençoados que renascem nos Campos de Juncos para a vida eterna. Acabam presos entre os mundos, eventualmente vagando pelo Duat - que segundo as tradições, é um plano enorme e repleto de cavernas, salões e espaços onde um espírito poderia eludir os Netjeru.
   O termo "muuet"/mw.t significa "morto" (no plural, "muuetu", e no feminino, "muutet"), e é usado para se referir a espíritos que não receberam um funeral apropriado, ou as devidas oferendas e veneração dos familiares após seu falecimento, o que os torna agressivos, hostis e maliciosos. Também serve para definir os espíritos de pessoas que foram malignas em vida, ou que morreram de maneira injusta e violenta, não estando aptas para sua transfiguração e renascimento nos Campos de Juncos, transformando-se em obsessores, poltergeists, ou fantasmas, como popularmente denominamos na modernidade. Os egípcios acreditavam que os mortos malignos eram responsáveis pelos desastres que ocorriam na humanidade, desde os desastres naturais como períodos de secas e pragas, até abortos, pesadelos, desordem mental e emocional, e mortes prematuras de indivíduos.
   Enquanto os Akhu são citados nos livros do submundo (para citar alguns: Amduat, Book of Gates, Book of Caverns, Books of the Sky) como seguidores de Ra e adoradores do Deus Sol, os muuetu são tidos como seus inimigos, forças do caos e da desordem que se opõem à criação. Os Netjeru se empenham em eliminá-los do plano material e do Duat, e há descrições variadas das punições que eles recebem dos Deuses, como serem decapitados, queimados em braseiros e fornalhas, resultando em seu extermínio na intenção de que não possam perturbar os vivos e criar isfet na Terra.
   Nos textos que se referem ao Duat e elucidam como é o submundo na perspectiva kemética, podemos designá-lo como um ambiente confuso e altamente perigoso, repleto de obstáculos e dificuldades, e habitado por muuetu e Netjeri (entidades e divindades de caráter duvidoso ou mesmo nocivo, que não devem ser confundidos com Netjeru, os Deuses). Sendo assim, a travessia até o Salão das Duas Verdades onde ocorre o julgamento final não é nem um pouco fácil, como atestado pelos numerosos feitiços, amuletos e rituais que os egípcios elaboravam para seus falecidos, a fim de assegurar que conseguiriam chegar diante dos Netjeru sãos e salvos. Praticamente todo o conteúdo dos Textos dos Sarcófagos e do Livro dos Mortos está relacionado a esse processo de passagem pelo Duat, o que fazer e dizer para garantir o renascimento.
   Ou seja, é muito válido que exista uma quantia enorme de espíritos perdidos vagando entre os planos, que tenham se perdido na travessia, ou que nem tenham compreendido seu falecimento, atônitos e em choque - especialmente no caso de quem parte de maneira súbita e violenta, como citado no Papiro Edwin Smith. Muitos Netjeri guardam os portões e pórticos necessários para a passagem no Duat, e os espíritos que não conhecem as respostas e reações corretas a esses seres mitológicos são barrados de prosseguir até seu destino de descanso final.
   Muuet podiam ser empregados em magia nociva por meio de evocações, que tinham por propósito comandá-los para que amaldiçoassem locais, objetos ou pessoas, causando danos e prejuízos conforme a intenção do usuário da magia. Sendo assim, os vivos também faziam uso de inúmeras práticas mágicas, principalmente feitiços e amuletos, destinados a proteger dos mortos e de sua influência maligna. Execrações também se destinam a eliminar muuet e suas influências, pois se configuram como inimigos da criação e da humanidade, geradores de isfet.

Referências
- Death and the Afterlife in Ancient Egypt - John H. Taylor
- Magic in Ancient Egypt - Bob Briar
- Living with the Dead - Ancestor Worship and Mortuary Ritual in Ancient Egypt - Nicola Harrington

A execrar obsessores e encaminhar sofredores,
   Alannyë Daeris 

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