sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Resenha: Tarô 3 - Oráculo e Métodos, de Nei Naiff

   Sinopse
: A trilogia Estudos completos do tarô tem como objetivo ensinar o conhecimento básico das cartas (história, simbologia, sistematização e interpretação), uma inigualável fonte de estudo e de pesquisa para o tarólogo contemporâneo. Este volume é destinado à chave oracular; nele são expostas as metodologias latino-americanas e europeias no trato da taromancia. O leitor entenderá as regras de lançamento para as cartas invertidas, para a combinação aos pares ou, ainda, como ler o antigo método italiano. É explanada a importância da estrutura de uma tiragem (geometria divina) e do posicionamento das cartas, bem como de sua relação com a pergunta “como interpretar?”. Além disso, esclarece quais aspectos são superstições e quais são verdadeiros. Nei Naiff também revela linguagens avançadas sobre dois temas recorrentes em consultas: amor e dinheiro. O livro traz conselhos importantes para uma boa leitura e interpretação correta do oráculo.

Ficha Técnica


   Autor: Nei Naiff
   Ano: 2019 (2° edição)
   Editora: Alfabeto
   Páginas: 384

   Como uma inveterada estudiosa de métodos oraculares, aprecio com gosto o trabalho que Nei Naiff desenvolve no livro de encerramento de sua trilogia, pois o faz de maneira impecável. Inicia a terceira obra falando sobre o oráculo, o tempo e o destino, a intuição, a projeção e a realidade, todos temas centrais quando falamos de uma tirada oracular. Aborda as formas geométricas em sua relação simbólica com a tarologia, para auxiliar o leitor a compreender qual o melhor formato para o tema que busca abordar de acordo com a geometria divina.
   Então segue para outros assuntos de enorme relevância, como direcionamentos para formular as perguntas, escolher a melhor tiragem, interpretar a carta no método, previsões, discorrendo até sobre o embaralhamento e escolha das cartas, para que não restem dúvidas. Os conselhos finais são pontuais e favorecerão enormemente os iniciantes que os levarem para a vida.
   Na parte 2, estão contidas as instruções acerca de diversos métodos para leitura de cartas, desde tiradas consagradas como a Mandala Astrológica, Péladan e Cruz Celta, até os métodos de escolha e disposição de cartas como o Método Europeu, Americano, Italiano e Básico, e a orientações sobre como aplicá-los nas tiradas já citadas.
   É louvável o fato de Nei ser o primeiro autor a reunir e explicar todas as metodologias e técnicas desenvolvidas para lançar as cartas do Tarô, sempre numa linguagem leve e objetiva. Exemplos de tiradas com imagens de diferentes Oráculos são apresentadas em todas as situações, para facilitar o entendimento dos conteúdos ensinados e auxiliar o leitor na compreensão de como as cartas são interpretadas na prática em cada posição ou método particular.
   E nas partes 3 e 4, os temas de amor e dinheiro são abordados a fundo, com descrições de cada um dos 22 arcanos maiores e suas possibilidades de interpretação dentro dessas áreas. É uma leitura pontual e esclarecedora do início ao fim - e pode-se dizer o mesmo da trilogia como um todo, essencial para quem deseja aprender o Tarô, e merecidamente renomada por sua qualidade.

A aplicar novos métodos,
   Alannyë Daeris.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Método Oracular de Sol em Escorpião

   Amanhã em meados das 07:20hrs (23/10), o Sol adentrará nos domínios marciais de Escorpião, então que tal examinar nossas tendências para esse período sob a influência escorpiana? O método a seguir pode ser aplicado a qualquer momento durante ou após a temporada de Sol em Escorpião, que vai até 22/11, mas quanto antes você a fizer, melhor, pois aproveita mais suas orientações.
   Você pode escolher qualquer oráculo de sua preferência que permita a configuração disposta na imagem. O Tarot (especialmente no método europeu) e o Petit Lenormand, com pares de cartas para cada posição, são os mais recomendados para essa tirada, mas não se sinta limitado(a) a eles. Escolha a ferramenta que sua intuição lhe recomendar.

O Método


1. Profundidade. Em que devo me aprofundar nas próximas semanas? Como posso aplicar meus esforços?
2. Estratégia. Qual estratégia posso elaborar para melhorar minha vida? O que exigirá uma atitude estratégica?
3. Cura. O que necessito curar em mim? Como me abrir para esse processo?
4. Sedução. O que me seduz? De que formas posso acessar meu poder de sedução e conquista?
5. Criticidade. Como está meu senso crítico. O que fazer para lidar bem com as críticas (inclusive as minhas próprias)?
6. Controle. Tenho facilidade em me controlar? De quais situações devo abrir mão do controle?

A contemplar venenos e curas,
   Alannyë Daeris.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Método Oracular das Escolhas e Decisões

   O método a seguir foi inicialmente desenvolvido por mim para uma consulente em uma leitura profissional de Petit Lenormand, e após algumas experimentações com ele, cheguei à estrutura que apresento nesse post. É uma tirada simples mas versátil, podendo ser aplicada em infinitos contextos que dependam de uma atitude ou decisão: triângulos amorosos, manter uma relação afetiva ou se separar, optar entre propostas profissionais, trocar de carreira ou de faculdade, investir ou não em um um projeto, enfim!
   Você pode escolher o oráculo de sua preferência para realizar a leitura; o Tarot, Petit Lenormand (Baralho Cigano), Vera Sibilla, Runas e outros oráculos de cartas e rúnicos são indicados, desde que permitam a configuração apresentada na imagem. Para maior aprofundamento e detalhes, você pode duplicar as posições 1, 2, 3 e 10, especialmente no Lenormand e Tarot, nesse último sendo recomendado o método europeu (um arcano maior + um menor).

O Método


1. Momento atual. Carta que simboliza o consulente agora e as circunstâncias que o cercam. O que busca ou deseja de verdade?
2. O que lhe fará bem. Qual a atitude aconselhada ou o melhor caminho nessa questão. O que será de fato melhor?
3. Previsões. Perspectivas gerais de futuro para o assunto ou situação que está sendo analisada.
4 - 5 - 6. Agir. O que ocorre se tomar a atitude.
6 - 8 - 9. Não agir. O que ocorre se não tomar a atitude.
10. Síntese. Resumo da leitura, revelando a energia geral da questão e sintetizando seu sentido principal.

A atravessar portões e trilhar caminhos,
   Alannyë Daeris.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

W'ab - Pureza e Purificação no Culto Kemético

   A purificação é um conceito central no Kemetismo, e pode ser considerada a primeira etapa para qualquer prática ou ritual realizado com os Netjeru. Não é mais nem menos importante que as outras etapas de um ritual, mas é necessário compreender que a purificação é um ato de respeito para com nosso corpo e com o Divino, e garante que o resto da prática será eficaz e surtirá os efeitos desejados.
   Assim como não reutilizamos os pratos sujos de comida sem antes lavá-los, não devemos movimentar energias e realizar atividades espirituais com os Deuses se estamos portando impurezas energéticas, que inevitavelmente vão se acumulando no cotidiano sem que notemos. O conceito de pureza a que os egípcios se referiam nada tem a ver com "pecados" ou "virtudes", e sim com a importância de estar adequadamente asseado e harmonizado na hora de realizar atos devocionais ou mágicos, ainda que palavras nocivas e comportamentos negativos que realizamos possam gerar isfet (caos e desordem), e consequentemente nos tornar impuros até que tomemos uma atitude para retirar tais energias. Portanto, a purificação é o processo de nos consagrarmos para um momento sagrado.
   A palavra W'ab significa "pureza, higiene, banhar-se, tornar puro", e pode ser representada pelo hieróglifo A6 (um homem em posição de henu/saudação com um jarro vertendo água sobre sua cabeça, cujo significado varia bastante de acordo com o contexto), ou pelo hieróglifo D60 (um jarro com pés, vertendo água, cujo significado é ser ou estar limpo), ambos demonstrados na imagem ao lado. O segundo símbolo indica que a purificação é um processo contínuo, como um caminho que precisa ser percorrido sempre que uma prática espiritual for realizada. E pela presença da água nos hieróglifos, também podemos deduzir que a limpeza espiritual obrigatoriamente envolve a limpeza física, uma depende da outra.
   No Egito Antigo, os templos só permitiam a entrada de visitantes segundo rígidas normas de pureza, que podiam incluir o jejum de determinados alimentos (como cebola roxa e carne de asno, porco ou peixe) por vários dias antes da visitação, banhos de natron, depilações (para evitar a proliferação de piolhos) e proibição de contato com determinadas pessoas e situações consideradas impuras. As regras de pureza eram significativamente mais rígidas para sacerdotes e funcionários dos templos, estendendo-se também às suas atitudes e comportamentos, que precisavam ser exemplares e atender aos 42 Ideais de Ma'at.
TT96, Complexo de
Tumbas de Sennefer.
   Os elementos básicos de purificação dentro da religião egípcia são água e natron, um mineral composto por carbonato de sódio, bicarbonato de sódio, sal e sulfato de sódio, com alto poder antisséptico. O natron era utilizado pelos antigos egípcios na higiene bucal, corporal, na limpeza da casa, como inseticida, e era um ingrediente chave no processo de mumificação. É capaz de purificar e proteger espiritualmente tanto os vivos quanto os mortos, e é muito evidente sua importância simbólica dentro do Kemetismo. O próximo post dessa série será sobre ele!
   Na modernidade, a purificação para feitiços, rituais e conexões com os Deuses egípcios não exige jejuns nem as práticas que eram realizadas nos templos antigos; entretanto, a pureza ainda é um conceito fundamental. Antes de rituais e celebrações mais elaboradas, é ideal que o praticante realize a higiene normal do corpo - escove os dentes, tome um banho completo (com natron ou ervas), e apare os pelos e unhas. Em práticas mais simples, como meditações e orações, ou quando não for possível realizar toda a rotina de higiene, é suficiente lavar as mãos e o rosto, escovar os dentes.
   O estado de pureza também se aplica ao ambiente e altar onde a prática será realizada, portanto, separe alguns minutos antes de começar para varrer o chão, organizar o recinto, tirar o pó do altar e dos instrumentos, e outras arrumações ou limpezas que se mostrem necessárias no local. Só então é possível seguir para a purificação espiritual do ambiente, que pode ser feita aspergindo natron e água, defumando com incensos naturais (nunca os de vareta feitos de carvão), sinos e sons, manipulação energética e diversos outros métodos. Existem alguns ingredientes que não devem ser utilizados nas práticas ou altares keméticos por serem considerados impuros, como é o caso dos incensos de vareta indianos, compostos de carvão e esterco de vaca, um material altamente inadequado na visão egípcia.
   É recomendado que praticantes mantenham uma rotina de purificações frequente, se possível diária ou semanal. Uma prática diária simples é lavar o rosto, as mãos e a boca com natron pela manhã, ou logo antes das suas atividades espirituais, se não for de seu costume ou possível se banhar por inteiro. Além da higiene física, a purificação pode envolver defumações, sons e sinos, abanilhos (leques de penas) e vassouras ritualísticas, ou outros métodos de sua preferência - portanto, o natron não é um ingrediente obrigatório para alcançar um estado de pureza satisfatório, mas é recomendado que se tente usá-lo sempre que possível antes de rituais e feitiços na presença dos Netjeru (Deuses egípcios).

Referências de Concepts of Purity in Ancient Egyptian - Quack, J. F.

A purificar meu coração,
   Alannyë Daeris.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Resenha: The Pictorial Key to the Tarot (O Tarô Ilustrado de Waite), de Arthur Edward Waite

   Sinopse: Estas cartas tornaram-se o baralho de maior autoridade já visto. A seriedade e a tradição deste tarô originam-se inicialmente da Ordem Mágica do Amanhecer Dourado e conduziram a tradição secreta ensinada pelos mistérios ancestrais. Waite deteve-se longa e carinhosamente sobre cada um dos 22 Arcanos. Essas são, naturalmente, as cartas que dão ao tarô a sua fascinação misteriosa. As raízes do tarô reportam-se à Kabbalah da antiguidade hebraica. O Tarô de Waite é cheio de símbolos que atraem nossa atenção apenas indiretamente - sua descoberta gradual é uma das surpresas deste livro.

Ficha Técnica


   Autor: Edward Arthur Waite
   Ano: 1911 (1ª edição) - 1999 (edição da imagem)
   Editora: Kuarup
   Páginas: 192

   O Tarô Ilustrado de Waite, sob o título original "The Pictorial Key to the Tarot", é um dos mais importantes livros sobre o tema, de autoria de Arthur Edward Waite - o criador do emblemático baralho de tarô que leva seu sobrenome. Esse manual lançado em 1911 originalmente acompanhava o baralho de Waite-Smith, e ainda hoje costumam ser vendidos juntos nas versões de algumas editoras.
   Nessa obra de linguagem rebuscada e com ares vitorianos, Waite desmente inúmeros mitos e narrativas fantasiosas sobre o Tarô e a sua origem - e é incrível perceber que ainda hoje muitos desses mitos ainda se perpetuam na comunidade esotérica. Se você já ouviu falar que o Tarô veio do Egito, nesse livro que você descobrirá quem foi o criador dessa teoria e como tudo isso começou. Waite também discorre sobre outros autores com obras relacionadas ao Tarô, como Etteilla e Papus, deixando claro suas visões e descontentamentos com o trabalho que fizeram.
   Já li muitas críticas quanto à complexidade da escrita do autor, e sua tonalidade que soa presunçosa ou altamente crítica em alguns momentos, mas aprecio a honestidade e é perceptível que tem pleno entendimento de suas afirmações, apesar de ser um linguajar realmente maçante que demorei a me acostumar. Embora esteja resenhando a versão em português, a versão que li foi a original em inglês, e é possível que a tradução para nossa língua tenha facilitado a compreensão.
   Após alguns capítulos curtos, mas densos, e de palavreado desafiador para leitores menos acostumados com a escrita do começo do milênio passado, o leitor é introduzido aos arcanos maiores e menores conforme a sequência proposta no tarô de Waite. A simbologia das cartas é indicada pelo texto, e alguns dos sentidos divinatórios para as cartas são oferecidos, incluindo para cartas invertidas - mas não espere descrições elaboradas e profundas, pois aqui há breves comentários apenas para instigar a percepção de quem lê. Depois das descrições, há um apanhado de interpretações divinatórias para todos os arcanos, e mais alguns significados adicionais para os menores.
   O método da Cruz Céltica, amplamente utilizado e estudado na modernidade, foi publicado pela primeira vez aqui nessa obra, junto de um estilo alternativo de tirada e um método bem elaborado de 35 cartas. Waite também oferece algumas sugestões de significados atrelados à repetição de cartas do mesmo número numa tirada (ex: dois 7, ou três rainhas). E para encerrar, cita uma bibliografia de livros escritos sobre as cartas até aquele período que poderiam ser pesquisados - mas não sem dizer ao leitor que "não recomendaria isso, pois suficiente já foi dito sobre Tarot" no livro dele. Presunçoso ou realista, dado o contexto? Talvez ambos, mas certamente antológico.

A explorar clássicos,
   Alannyë Daeris

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Oração a Sobek

Ó Imponente Crocodilo
Sobek é quem reina no Nilo!
Silencioso no pântano
Com chifres de carneiro
E movimento sorrateiro
Supremo Filho de Neith
Senhor das vias aquáticas
Portador da Ankh e do Was
Guardião de feroz coração
Seu ataque é certeiro
Seu olhar é enigmático
Afiados são seus dentes
Defensor dos inocentes
Desfazedor de maldades
Deus da vida e da fertilidade
Sê comigo benevolente
Quanto àquilo que sou carente
Soberano Magnífico do Kemet
Rogo que conceda-me sua coragem
Sou imensamente grato, ó Vigilante!

A mergulhar nos domínios do Encouraçado,
   Alannyë Daeris.

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Duat e Aaru - O Submundo e o Pós-Vida no Egito Antigo

   O Duat (dwꜣt) é o plano de transição dos mortos para a vida eterna na espiritualidade kemética, representado pelo hieróglifo de uma estrela dentro de um círculo. Ele se localiza no corpo de Nut segundo os Livros do Céu de períodos tardios, em uma localidade próxima da linha do horizonte, mas não há um consenso acerca de suas características exatas nas fontes egípcias, que ora citam o Duat como um plano ctônico e abaixo da terra, ora celestial e num local oculto do firmamento. Em realidade, é possível que fosse entendido como um plano transicional entre o céu e a terra, que abrange as estrelas e os astros mas também é subterrâneo.
   Além de ser o reino de Osíris, o Deus dos Mortos, e de outras divindades relacionadas ao Submundo, o Duat está intimamente ligado a Ra, o Deus Sol, que morre todo anoitecer e atravessa o submundo com sua barca solar durante o período da noite, iluminando o reino dos mortos e lutando contra seu eterno adversário, a serpente A.p.e.p (Apófis), que controla as forças do caos.
Pintura na tumba de Thutmose
III, da Hora 4 do Amduat.
   Ra possui muitos ajudantes nessa batalha - inclusive espíritos luminosos (Akh) de indivíduos que alcançam a vida eterna -, mas precisa superar obstáculos e desafios que são detalhados em alguns escritos, como no Livro do Amduat, reservado apenas para o Faraó e a nobreza. É dessa noção que posteriormente surge a ideia de periculosidade na travessia do Duat para as almas dos egípcios em geral, que precisavam se mostrar dignos para obter a dádiva da eternidade.
   É um conceito que já existe desde os primeiros registros funerários do Antigos Egito, os Textos das Pirâmides, que datam de meados da Quinta Dinastia. Diversos livros e compilações de textos egípcios tratam acerca do Duat, sendo os principais os Textos das Pirâmides (Pyramid Texts), os Textos dos Sarcófagos (Coffin Texts), o Livro dos Dois Caminhos (Book of Two Ways), Livro das Cavernas (Book of Caverns), Livro dos Mortos (Book of Coming Forth by Day), Livro do Amduat, Livro dos Portões (Book of Gates) e os já citados Livros dos Céus (Books of the Sky), mas esses não são os únicos. Cada um desses conjuntos de escritos, vignettes e spells oferece uma perspectiva diferente e muitas vezes contraditória às outras, o que ocorre com frequência na mitologia kemética, pois os egípcios compreendiam que não havia uma única verdade ou visão suprema nos temas espirituais, e que o entendimento dessas questões escapava à sua compreensão plena.
   Os Textos dos Sarcófagos surgem no início do Império Médio num momento de "democratização" do pós-vida, cujo acesso aos papiros e feitiços funerários deixou de ser exclusivo ao Faraó como acontecia com os Textos das Pirâmides, e passou a ser disponível às pessoas normais da sociedade, desde que pudessem arcar com escribas para elaborar seus papiros mágicos de proteção, sacerdotes para efetuar os rituais que o despertariam no além e lhe devolveriam os sentidos, amuletos e outros aparatos funerários - como as "casas da alma" (soul houses) que surgiram em meados de 2000 a.D, miniaturas de casas feitas de cerâmica ou madeira e decoradas com móveis e alimentos, que serviam para prover as necessidades do falecido na eternidade. Junto à popularização do Duat, alguns conceitos surgiram e se estabeleceram a partir de então, como os grandes perigos, monstros mitológicos e dificuldades que aguardam as almas que realizam a travessia.
   O Livro dos Dois Caminhos é um dos mais importantes nesse sentido, e foi o precursor dos livros do submundo elaborados no Império Novo, bem como do famoso Livro dos Mortos, pois apresenta um mapa simbólico do Duat e sugere algumas de suas características geológicas e topográficas - como cidades, montanhas, rios, lagos, campos, cavernas e ilhas, em muitos pontos iguais à Terra, mas de cabeça para baixo. Existem também elementos sobrenaturais, como um lago de fogo que divide os dois caminhos possíveis de/até Rosetau, paredes de metal, labirintos confusos que ziguezagueiam sobre água e terra e se fundem entre si, com becos sem saída e paredes de ferro. Somente conseguindo navegar por esses obstáculos e superá-los um falecido se tornaria um espírito luminoso (Akh) e viveria eternamente. Nos Textos dos Sarcófagos, o spell 1072 elucida: "Os caminhos aqui estão em confusão, cada um deles é oposto ao seu similar. São aqueles que os conhecem que encontrarão seus caminhos. Eles estão altos nas paredes de pedra que estão em Rosetau, que está tanto na água quanto na terra.".
   Outro aspecto desafiador no submundo são os portões protegidos por divindades ameaçadoras e entidades perigosas, que podiam impedir a jornada do falecido caso ele não fosse digno. Entretanto, em muitos escritos e feitiços tais entidades atacam os mortos indiscriminadamente, e só podem ser derrotadas caso o indivíduo saiba seus nomes verdadeiros e possa efetuar feitiços adequados contra elas - por isso a importância dos textos funerários e amuletos, inclusive para proteger o morto de ser decapitado ou perder sua magia (heka) enquanto no submundo.
   Pois sim, o espírito podia falecer enquanto atravessa o Duat e ser incapacitado de alcançar a vida eterna, e pela quantidade massiva de textos, objetos e práticas dedicadas à essa finalidade, é possível concluir que a obtenção da vida eterna nos Campos de Juncos era o objetivo maior de cada cidadão egípcio. Muitos dos feitiços nos Textos dos Sarcófagos são voltados para a proteção contra monstros e entidades malignas, como o spell 474 que se refere às entidades pescadoras que caçavam as almas dos falecidos no Duat: "você não irá me capturar com a rede em que captura os mortos".
   Em alguns escritos, a moradia de certos Deuses/Netjeru é atribuída como o Duat - além de Anúbis e Osíris, os Senhores do Submundo, Hathor, Horus (Heru-Wer) e Ma'at, além de uma infinitude de seres mitológicos, guardiões assustadores com nomes bizarros, e entidades malignas associadas a Apófis (A.p.e.p). É incerto se todas essas criaturas são servos de Apófis ou se algumas estão sob o domínio dos Netjeru, pois uma pequena parcela dos guardiões é relatada como favorável ao falecido, mas apenas se ele se mostrar digno.
   Os caminhos do Duat levam aos Campos de Juncos, mas esse não é o único destino possível para um Akh. O Livro dos Dois Caminhos também cita a localização da Mansão de Thoth no lugar de ma'at (verdade), para aqueles que seguem um culto lunar e desejam se tornar estrelas no céu noturno.

Rosetau - Aboda de Wesir 


   Foi estabelecido pela primeira vez no Livro dos Dois Caminhos, e parece ser um plano ctônico nas profundezas do Duat. O spell 241 dos Textos dos Sarcófagos faz alusão a ser um local onde os mistérios do submundo estão reservados: "Eu (falecido/Osíris) vim a Rosetau para saber o segredo do Duat, em que Anúbis é iniciado". Mas é evidente que não é um ambiente de permanência das almas, apenas uma transição ou passagem até chegar no salão do julgamento ou até Aaru.
   O termo Rosetau é interessante pois significa "passagem de arrastar", e faz menção a ser uma entrada irregular como de uma tumba, e com o tempo própria necrópolis de Memphis e de Abydos passaram a ser denominadas assim, até que Rosetau se tornasse uma referência à transição para o submundo, ou do submundo em si.

Aaru (jꜣrw) ou Sekhet-Aaru (sḫt-jꜣrw) - Os Campos de Juncos


Agricultura em Sekhet-Aaru
no Papiro de Nakht, da 18ª
Dinastia.
   As almas que conseguem percorrer com êxito todo o Duat chegam ao Salão das Duas Ma'ati para o julgamento final, onde seus corações serão pesados na balança contra a pena de Ma'at, e precisarão recitar as 42 Confissões Negativas mediante os juízes divinos. Quem for considerado indigno é devorado pela entidade maligna Ammit e consumido pela escuridão (ainda que existam relatos de espíritos que sobrevivam e permaneçam no Duat se tornando ameaças) e os dignos se transformam em "Akh" (espírito luminoso), e continuam sua travessia até chegar em Aaru, os Campos de Juncos - mas não há garantia de êxito nessa última jornada, e para adentrá-lo, devem ser capazes de atravessar os portões protegidos por monstros e divindades menores ameaçadoras armadas com facas, variando entre 15 a 21 portões de acordo com o registro.
   No Livro da Vaca Celestial, que alguns trechos datam do Primeiro Período Intermediário (2181-2400), há uma referência a Atum-Ra criar os Campos de Juncos após decidir que não irá destruir suas criações humanas. Os Campos de Juncos são compostos de ilhas férteis que pode ser considerada uma versão idealizada do Nilo em seus períodos férteis - e o próprio Aaru é considerado o Ka do Delta do Nilo (leia mais sobre o Ka e as partes da alma aqui) - ideal para agricultura, caça e pecuária, onde os espíritos luminosos e dignos se reúnem em cidades e podem viver por toda a eternidade junto a Osíris, tendo uma vida similar à da Terra. Portanto, mantinham suas ocupações, como era o caso dos Faraós, que continuavam numa posição de liderança. Para "burlar" a necessidade de trabalhar eternamente, surgiu a prática dos ushabtis, pequenas estátuas em formato de trabalhadores que eram ativados magicamente para trabalhar pelo seu dono no pós-vida, enquanto ele pode gozar de uma eternidade tranquila e sem obrigações.
   Mas os espíritos luminosos que alcançavam o Aaru não estavam confinados a ele, e podiam interferir de maneira positiva ou negativa em relação aos vivos - para punir malfeitores, intervir em assuntos que os vivos requisitam, favorecer e abençoar seus congêneres e descendentes, ou se vingar de ofensas ou descaso com suas tumbas. Portanto, era de interesse comum que os mortos alcançassem o status de Akh, e as famílias não mediam esforços para garantir os ritos funerários adequados, oferendas e outros aparatos para garantir um Akh que intercederia por elas nos momentos de necessidade.

Sekhet-Hetep - Campo das Oferendas


O pós-vida em Sekhet-Hetep,
extraída do Papiro de Anhai
c.1150b.C.
   Menções a um Campo das Oferendas, ou se traduzido literalmente, Campo da Paz, também aparece em alguns escritos, por vezes se referindo ao Aaru, e em outras dando a entender que se trata de um outro local, um plano à parte onde Osíris também reside. Em certas descrições, é citado como sendo o berço de nascimento dos Deuses. Por exemplo, no spell 77 do Livro dos Mortos para que o falecido se transmute em um falcão de ouro, são citados dois Campos: "Estou completo como o belo falcão de ouro sobre o poleiro da garça, cujas palavras Ra vai para ouvir diariamente. Eu sento dentre esses grandes Deuses do Ceu-água, os dois campos de Hetep estão dispostos para mim em minha presença".
   O Sekhet-Hetep é descrito com mais detalhes nos Textos das Pirâmides, onde muitos spells fazem menção às suas características geográficas - incluindo medidas de distância metafóricas, distritos, caminhos e locais para oferendas, que são de longe as localidades mais referidas nesse plano, ocorrendo nos spells 2, 6, 7, 8, 22, 23, dentre outros.
   Esse plano possui muitas descrições de ilhas específicas e divisões, como em uma spell do Livro dos Mortos no Papiro de Nebseni que indica que o local de reencontro entre as almas e seus entes amados se dá na ilha de Qenqenet: "O Qenqenet, eu adentrei em ti, e eu vi Osíris (o pai), e eu vi minha mãe, e me uni [à minha esposa]". Para maiores informações, recomendo as leituras abaixo que serviram de base, em especial o livro de E. A. Wallis Budge, The Egyptian Heaven and Hell.

Referências
- Imagining the Beyond: The Conceptualization of Duat between the Old and the Middle Kingdoms - Silvia Zago
- Religion in Ancient Egypt: Gods, Myths, and Personal Practice - David P Silverman, John Baines, Leonard H. Lesko
- Magic in Ancient Egypt - Geraldine Pinch
- The Egyptian Heaven and Hell - E. A. Wallis Budge
- Contextualizing the Osiris Shaft at Rosetau (Giza) in Archaeological History - Nicholas Edward Whiting
- The Ritual Landscapes of the Field of Hetep - Peter Robinson

A ofertar Ib, e Ma'at a Yinepu, o Senhor do Duat,
   Alannyë Daeris