segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Amuletos e Talismãs Keméticos (Meket, Nehet, Wedja, Sa)

   Amuletos são parte essencial da religiosidade kemética, existindo desde os primórdios da cultura egípcia para diversos propósitos: proteção contra espíritos, doenças, crimes, prejuízos, pessoas mal intencionadas, e também para fertilidade, cura, prosperidade, saúde, e outras intenções de importância em épocas antigas. Eram usados pelos vivos e pelos falecidos, como é o caso do tradicional amuleto de escaravelho que era colocado no peito das múmias após o embalsamento, para que seus corações não testemunhassem contra si mesmos no julgamento final.
   Por amuleto, entendem-se pequenos objetos que são carregados ou usados no corpo, geralmente em forma de pingentes, pulseiras, braceletes ou brincos; porém, os egípcios estendiam essa definição para abranger itens que ficavam em contato com o corpo, como os descansos de cabeça. Era comum ser feita uma distinção entre amuletos e talismãs, sendo os primeiros destinados a proteger, e os segundos a enaltecer alguma qualidade do usuário, ou gerar um resultado esperado. As palavras "sa", "meket" e "nehet" costumam se referir a amuletos protetores, enquanto "wedja" serve para objetos que concedem proteção e também qualidades desejáveis, como saúde, força ou fertilidade. Podemos dividi-los em sete categorias principais: 
  1. Amuletos de divindades e animais sagrados;
  2. Amuletos de proteção ou aversão;
  3. O escaravelho para os vivos e falecidos;
  4. Amuletos de assimilação;
  5. Amuletos para obtenção de poderes;
  6. Amuletos de posses, propriedades, ou como oferendas;
  7. Simbolismo de materiais (sem necessariamente um formato).
   Muitas das informações que temos disponíveis sobre os amuletos egípcios, como eram utilizados, e quais eram suas funções, provém de fórmulas/spells registradas nos Textos das Pirâmides (Pyramid Texts), Textos dos Sarcófagos (Coffin Texts), e no famoso Livro dos Mortos (Book of Coming Out by Day). Há outros registros arqueológicos conhecidos, como inscrições em paredes de templos com listas de amuletos, e papiros funerários de dinastias tardias que indicam como os amuletos deviam ser colocados nos sarcófagos e múmias. A coletânea de feitiços Greek Magical Papyri editado por Hans Dieter Betz também é uma grande referência para o processo por trás dos amuletos mágicos de períodos mais tardios, já mesclados com elementos provindos de outras culturas e religiões próximas.
   A enorme presença de amuletos e talismãs em casas, tumbas, templos e altares onde oferendas votivas eram realizadas implica que esses objetos eram considerados necessários para a manutenção da vida, utilizados por todas as classes sociais - mesmo aquelas de menor poder aquisitivo. Enquanto indivíduos nobres e abastados podiam investir em amuletos variados e de confecção superior, as pessoas mais pobres dispunham de poucos exemplares, que eram usados por toda a vida e levados para as tumbas quando faleciam, fornecendo suas benesses também no pós-vida.
   Embora toda a sociedade fizesse uso de acessórios consagrados para proteção, vitalidade e outros benefícios, e amuletos temporários fossem usados por todos na iminência de combater doenças, proteger durante viagens ou em situações perigosas, há uma expressiva maioria de amuletos destinados ao uso permanente por mulheres e crianças, que se acreditavam estar mais vulneráveis às forças sobrenaturais. A mortalidade infantil era uma ocorrência preocupante em tempos antigos, e a suscetibilidade dos infantes às doenças gerava uma atenção especial ao tema no aspecto espiritual. Muitos feitiços do segundo milênio antes da Era Comum enfatizam o perigo dos mortos possuindo ou afetando negativamente as crianças, por terem inveja da vida. O processo da menstruação também era visto como um período de "impureza", que por sua vez, presumidamente gerava brechas para a atuação de entidades mal intencionadas.
   O material utilizado na confecção do amuleto era de suma importância, pois a cor confere certas relações simbólicas - amuletos vermelhos, por exemplo, estavam ligados à energia, poder, agressividade e ao sangue. O material mais conhecido é a faiança, um tipo de cerâmica azul acessível e facilmente moldável, com significativa importância religiosa pois é reluzente como os egípcios acreditavam ser seus Deuses e Ancestrais honrados. Porém, nem todos os itens usados como amuletos e talismãs eram confeccionados; os egípcios acreditavam que Heka (magia) também estava contida em objetos raros ou estranhos, que podiam ser naturais, como conchas provenientes do Mar Vermelho, pedras de rios com formato fálico ou de vagina para fertilidade, e búzios, que eram usados como amuletos contra o mau olhado por diversas culturas e muito populares no Egito.
   Além da faiança, uma lista extensa de materiais pode ser citada, cada qual com suas simbologias particulares. Desde os tempos mais antigos, materiais orgânicos como osso, conchas, marfim e garras foram usados, e mais raramente madeira. Mas o material mais utilizado foram as pedras, com evidências de que a pedra-sabão já era entalhada nos períodos pré-dinásticos (~5000AEC) no formato de amuletos e envidraçada em cor verde para imitar a turquesa e o feldspato.
   Num geral, citemos as pedras: sárdio, lápis lázuli, turquesa (em especial as verdes), jaspe verde e vermelho, ametista, hematita, esteatita, serpentina, pedra calcária, alabastro, quartzo leitoso, quartzo transparente, calcedônia, crisoprázio, ágata, olivina, obsidiana, diorito, basalto e siltito. Após a Primeira Dinastia, amuletos começaram a ser feitos em metal, como ouro, prata, electrum, cobre, e raramente bronze até o primeiro milênio antes da Era Comum (a.C.).
   A partir do Império Novo (dinastias 18 a 20, 1548-1086AEC), temos evidência de que os amuletos também passaram a ser elaborados com textos inscritos sobre papiro e linho, e na Era Romana em lamelas de ouro e prata, folhas bem finas que podiam ser enroladas. Porém, a prática de usar textos mágicos como amuletos é certamente mais antiga, pois há uma referência no Papiro Edwin Smith, escrito na transição entre o Segundo Período Intermediário e o Império Novo, meados de 1600AEC - e possivelmente já sendo uma fórmula antiga que foi copiada, pois a maior parte dos formulários mágicos consistem em cópias de receitas antigas e editadas, ou procedimentos já estabelecidos no momento da elaboração do papiro.
Pingente de metal para
amuletos do Império Médio
(1850-1800AEC) no British
Museum (EA24774)
.

   Como eram usados em uma base diária no cotidiano, os amuletos estavam sujeitos a sofrerem desgastes ou se tornarem ineficazes (especialmente aqueles de materiais mais delicados, como linho e papiro), portanto, muitos amuletos eram carregados em recipientes para se manterem intactos. Era comum o uso de saquinhos de linho, couro e a partir do primeiro milênio antes da Era Comum, em tubos de metal com as extremidades removíveis. Poucos exemplares de linho ou couro foram encontrados até então pelos arqueólogos, mas há uma quantidade considerável de tubos de metal para amuletos conhecidos e sendo estudados. Além dos textos mágicos para proteção, os tubos de amuletos também podiam carregar outros itens apotropaicos, como fragmentos de ossos, resina, pedras como granadas e cornalinas, cera de abelha, dentre outros materiais usados como amuletos.
   Diversos formatos de amuletos existiram no Egito, e alguns se destacam ainda hoje por sua popularidade e importância simbólica no contexto mitológico e cultural kemético. Dentre eles, o principal e arquetípico é o Olho de Hórus (Wedjat), mas também dispunham de enorme popularidade a Ankh (hieróglifo da vida), o Sa (nó de proteção), o Tyet (Nó de Ísis), o Djed (pilar de Osíris), o Ib (coração), dentre outros. Segundo um levantamento da egiptóloga Geraldine Pinch, há pelo menos 275 principais tipos de amuletos egípcios, que foram exportados e copiados por todo o mundo antigo. Também há exemplos de amuletos confeccionados em formato de plantas, animais, divindades, partes do corpo humano, móveis e objetos cotidianos, ferramentas, objetos ritualísticos e entidades em geral. A intenção geralmente era de transferir alguma característica ou qualidade desejada do objeto sendo retratado, variando de acordo com o propósito ou necessidade.
   Numa próxima oportunidade, tratarei em maiores detalhes a respeito dos amuletos citados acima, como os talismãs e amuletos de papel com textos mágicos, e os tradicionais Sa, Tyet, Djed, o Escaravelho, e afins.

Referências
• Amulets of Ancient Egypt (1994), por Carol Andrews
• The Materiality of Magic (2015) - The Materiality of Textual Amulets in Ancient Egypt, por Jacco Dieleman, pg 23-58
• Magic in Ancient Egypt (1995), por Geraldine Pinch

A proferir encantamentos sobre preciosos pingentes,
   Alannyë Daeris.

3 comentários:

  1. O que seria um amuleto de assimilação ?

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    1. São os amuletos em forma de animais ou partes do corpo humano, que fornecem ao usuário os poderes que são representados pelo animal ou parte do corpo - ou seja, o usuário "assimila" tais qualidades atreladas simbolicamente ao formato. Um dos mais conhecidos objetos pertencentes a esse grupo é o amuleto de coração (Ib).

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    2. Muito interessante, obrigado !

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