terça-feira, 3 de outubro de 2023

Senet, o Jogo Egípcio da Travessia

   O Senet é um jogo de tabuleiro egípcio, mencionado desde 2620 a.E.C., com representações e sinais hieroglíficos que datam de períodos anteriores, como no início da Era de Bronze II. Existem outros jogos de tabuleiros egípcios, como o Mehen e o Shen (ou "Cães e Chacais"), mas o Senet é o mais conhecido, sendo referido inclusive na cultura popular e no entretenimento contemporâneo. Esse jogo variou muito pouco ao longo de sua história de aproximadamente 2000 anos, tendo sido deixado de lado somente no tardio Período Romano. Algumas evidências sugerem que tenha continuado a ser jogado por algum tempo na era romana, devido a grafites encontrados no telhado do Templo de Dendera, que data dessa época.
   Ele é popularmente traduzido como "jogo da travessia da alma" - referindo-se ao Ba, a essência vital que é representada por um pássaro com cabeça humana; saiba mais sobre os conceitos de corpo e alma no Kemetismo nesse texto. O propósito do Senet é efetuar com êxito a perigosa jornada pelo Duat (o submundo egípcio), alcançando assim os Salões das Duas Maa'ti, onde ocorre o julgamento da alma e a pesagem do coração - uma etapa necessária para ser agraciado com o renascimento e uma subsequente vida eterna nos Campos de Juncos. Tal associação simbólica com a travessia do espírito no além parece ocorrer em um momento posterior, após o jogo ter sido criado e difundido na civilização egípcia como um passatempo.
   O Senet é composto de 10 ou mais peças, dispostas em um tabuleiro retangular com 30 divisões quadriculadas, num formato de 3 colunas, cada uma contendo 10 casas. O tabuleiro costuma indicar a direção de início do jogo, geralmente no topo superior esquerdo, e era comum que as casas fossem decoradas com padrões ou desenhos simbólicos. As decorações das últimas 5 casas do tabuleiro eram distintas, e faziam menções à água ou conceitos benéficos; entretanto, a posição dessas casas e os hieróglifos nelas contidos variam de tabuleiro para tabuleiro. Junto aos tabuleiros de Senet, é comum a presença de "casting sticks", palitos lançados ao acaso, ou ossos (astragalos), que serviam como dados e eram usados para determinar a quantidade de casas percorrida pelos peões.
   Diversos tipos de tabuleiros têm sido encontrados por arqueólogos, alguns altamente sofisticados e decorados, com imagens de Deuses e cenas mitológicas nas laterais da caixa, gavetas para armazenar as peças. Os materiais usados para a confecção de tabuleiros variam entre pedras preciosas (como lapis lazúli) e outros tipos de pedras, faiança, marfim, madeira, ostraca ou pratos de terracota. Também há evidências de tabuleiros de Senet mais simples, sem inscrições, ou riscados no chão e em edifícios, possivelmente para partidas improvisadas. Nem todos os tabuleiros dos quais há registro acompanhavam peças como peões, palitos ou dados.
   Até o presente momento, não foi possível reconstruir de forma fidedigna o conjunto original de regras do jogo, pois não existem registros escritos ou instruções remanescentes sobre como era jogado, somente representações visuais de partidas, que trazem informações limitadas sobre a estrutura e funcionamento do jogo em si. Alguns parâmetros gerais sobre as partidas são mais aceitos; considera-se que cada um dos dois jogadores recebe uma quantia igual de peões no início da partida, e que o objetivo é alcançar o final do tabuleiro, a última casa. As peças provavelmente se movem em padrão de S, da esquerda para a direita e vice-versa. Algumas casas parecem causar efeito positivo ou negativo sobre os peões.
   O Senet é citado em textos, como no Capítulo 17 do Book of the Dead (Livro dos Mortos), e em outros papiros, que relatam muito pouco sobre a execução de uma partida. Ainda assim, os historiadores Timothy Kendall e R. C. Bell efetuaram reconstruções das regras, estimadas por intermédio de fragmentos de informações em textos egípcios, que dificilmente representam a jogabilidade original, mas sugerem possibilidades interessantes para uma adaptação moderna e "jogável". Você pode acessar nesse link, em inglês. Um outro material escrito, disponibilizado gratuitamente pela Universidade de Chicago, oferece um guia completo para fazer o seu e regras para jogar - leia nesse link.
   Os egípcios acreditavam que a travessia pelo Duat era repleta de desafios e povoada por entidades nefastas, que poderiam impedir a chegada do falecido ao local do julgamento, ou roubar partes de seu corpo e alma, condenando o indivíduo à danação - literalmente, uma questão de vida ou morte eterna. Em murais e afrescos em tumbas egípcias, existem cenas de partidas de Senet sendo jogadas por falecidos no além e seus familiares vivos, atestando que a temática do jogo por simples correlação simpática era suficiente para estabelecer uma ponte entre esse mundo e o próximo, conectando os vivos e os mortos por representar a transição entre os planos, trazendo os ancestrais para perto com auxílio do lúdico.
   Sendo assim, o Senet é um artefato que perpassa o secular para adentrar e se consolidar no sagrado, representando a importância do aspecto mágico-religioso em uma civilização que abraça com estima seus mitos, símbolos, invenções, brincadeiras, e percebe a imanência do divino em todas as camadas da realidade.

Referências

The Egyptian Game of Senet and the Migration of the Soul - Peter A. Piccione
Passing from the Middle to the New Kingdom: A Senet Board in the Rosicrucian Egyptian Museum - Walter Crist

A lançar dados com Shai,
   Alannyë Daeris