sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Duat e Aaru - O Submundo e o Pós-Vida no Egito Antigo

   O Duat (dwꜣt) é o plano de transição dos mortos para a vida eterna na espiritualidade kemética, representado pelo hieróglifo de uma estrela dentro de um círculo. Ele se localiza no corpo de Nut segundo os Livros do Céu de períodos tardios, em uma localidade próxima da linha do horizonte, mas não há um consenso acerca de suas características exatas nas fontes egípcias, que ora citam o Duat como um plano ctônico e abaixo da terra, ora celestial e num local oculto do firmamento. Em realidade, é possível que fosse entendido como um plano transicional entre o céu e a terra, que abrange as estrelas e os astros mas também é subterrâneo.
   Além de ser o reino de Osíris, o Deus dos Mortos, e de outras divindades relacionadas ao Submundo, o Duat está intimamente ligado a Ra, o Deus Sol, que morre todo anoitecer e atravessa o submundo com sua barca solar durante o período da noite, iluminando o reino dos mortos e lutando contra seu eterno adversário, a serpente A.p.e.p (Apófis), que controla as forças do caos.
Pintura na tumba de Thutmose
III, da Hora 4 do Amduat.
   Ra possui muitos ajudantes nessa batalha - inclusive espíritos luminosos (Akh) de indivíduos que alcançam a vida eterna -, mas precisa superar obstáculos e desafios que são detalhados em alguns escritos, como no Livro do Amduat, reservado apenas para o Faraó e a nobreza. É dessa noção que posteriormente surge a ideia de periculosidade na travessia do Duat para as almas dos egípcios em geral, que precisavam se mostrar dignos para obter a dádiva da eternidade.
   É um conceito que já existe desde os primeiros registros funerários do Antigos Egito, os Textos das Pirâmides, que datam de meados da Quinta Dinastia. Diversos livros e compilações de textos egípcios tratam acerca do Duat, sendo os principais os Textos das Pirâmides (Pyramid Texts), os Textos dos Sarcófagos (Coffin Texts), o Livro dos Dois Caminhos (Book of Two Ways), Livro das Cavernas (Book of Caverns), Livro dos Mortos (Book of Coming Forth by Day), Livro do Amduat, Livro dos Portões (Book of Gates) e os já citados Livros dos Céus (Books of the Sky), mas esses não são os únicos. Cada um desses conjuntos de escritos, vignettes e spells oferece uma perspectiva diferente e muitas vezes contraditória às outras, o que ocorre com frequência na mitologia kemética, pois os egípcios compreendiam que não havia uma única verdade ou visão suprema nos temas espirituais, e que o entendimento dessas questões escapava à sua compreensão plena.
   Os Textos dos Sarcófagos surgem no início do Império Médio num momento de "democratização" do pós-vida, cujo acesso aos papiros e feitiços funerários deixou de ser exclusivo ao Faraó como acontecia com os Textos das Pirâmides, e passou a ser disponível às pessoas normais da sociedade, desde que pudessem arcar com escribas para elaborar seus papiros mágicos de proteção, sacerdotes para efetuar os rituais que o despertariam no além e lhe devolveriam os sentidos, amuletos e outros aparatos funerários - como as "casas da alma" (soul houses) que surgiram em meados de 2000 a.D, miniaturas de casas feitas de cerâmica ou madeira e decoradas com móveis e alimentos, que serviam para prover as necessidades do falecido na eternidade. Junto à popularização do Duat, alguns conceitos surgiram e se estabeleceram a partir de então, como os grandes perigos, monstros mitológicos e dificuldades que aguardam as almas que realizam a travessia.
   O Livro dos Dois Caminhos é um dos mais importantes nesse sentido, e foi o precursor dos livros do submundo elaborados no Império Novo, bem como do famoso Livro dos Mortos, pois apresenta um mapa simbólico do Duat e sugere algumas de suas características geológicas e topográficas - como cidades, montanhas, rios, lagos, campos, cavernas e ilhas, em muitos pontos iguais à Terra, mas de cabeça para baixo. Existem também elementos sobrenaturais, como um lago de fogo que divide os dois caminhos possíveis de/até Rosetau, paredes de metal, labirintos confusos que ziguezagueiam sobre água e terra e se fundem entre si, com becos sem saída e paredes de ferro. Somente conseguindo navegar por esses obstáculos e superá-los um falecido se tornaria um espírito luminoso (Akh) e viveria eternamente. Nos Textos dos Sarcófagos, o spell 1072 elucida: "Os caminhos aqui estão em confusão, cada um deles é oposto ao seu similar. São aqueles que os conhecem que encontrarão seus caminhos. Eles estão altos nas paredes de pedra que estão em Rosetau, que está tanto na água quanto na terra.".
   Outro aspecto desafiador no submundo são os portões protegidos por divindades ameaçadoras e entidades perigosas, que podiam impedir a jornada do falecido caso ele não fosse digno. Entretanto, em muitos escritos e feitiços tais entidades atacam os mortos indiscriminadamente, e só podem ser derrotadas caso o indivíduo saiba seus nomes verdadeiros e possa efetuar feitiços adequados contra elas - por isso a importância dos textos funerários e amuletos, inclusive para proteger o morto de ser decapitado ou perder sua magia (heka) enquanto no submundo.
   Pois sim, o espírito podia falecer enquanto atravessa o Duat e ser incapacitado de alcançar a vida eterna, e pela quantidade massiva de textos, objetos e práticas dedicadas à essa finalidade, é possível concluir que a obtenção da vida eterna nos Campos de Juncos era o objetivo maior de cada cidadão egípcio. Muitos dos feitiços nos Textos dos Sarcófagos são voltados para a proteção contra monstros e entidades malignas, como o spell 474 que se refere às entidades pescadoras que caçavam as almas dos falecidos no Duat: "você não irá me capturar com a rede em que captura os mortos".
   Em alguns escritos, a moradia de certos Deuses/Netjeru é atribuída como o Duat - além de Anúbis e Osíris, os Senhores do Submundo, Hathor, Horus (Heru-Wer) e Ma'at, além de uma infinitude de seres mitológicos, guardiões assustadores com nomes bizarros, e entidades malignas associadas a Apófis (A.p.e.p). É incerto se todas essas criaturas são servos de Apófis ou se algumas estão sob o domínio dos Netjeru, pois uma pequena parcela dos guardiões é relatada como favorável ao falecido, mas apenas se ele se mostrar digno.
   Os caminhos do Duat levam aos Campos de Juncos, mas esse não é o único destino possível para um Akh. O Livro dos Dois Caminhos também cita a localização da Mansão de Thoth no lugar de ma'at (verdade), para aqueles que seguem um culto lunar e desejam se tornar estrelas no céu noturno.

Rosetau - Aboda de Wesir 


   Foi estabelecido pela primeira vez no Livro dos Dois Caminhos, e parece ser um plano ctônico nas profundezas do Duat. O spell 241 dos Textos dos Sarcófagos faz alusão a ser um local onde os mistérios do submundo estão reservados: "Eu (falecido/Osíris) vim a Rosetau para saber o segredo do Duat, em que Anúbis é iniciado". Mas é evidente que não é um ambiente de permanência das almas, apenas uma transição ou passagem até chegar no salão do julgamento ou até Aaru.
   O termo Rosetau é interessante pois significa "passagem de arrastar", e faz menção a ser uma entrada irregular como de uma tumba, e com o tempo própria necrópolis de Memphis e de Abydos passaram a ser denominadas assim, até que Rosetau se tornasse uma referência à transição para o submundo, ou do submundo em si.

Aaru (jꜣrw) ou Sekhet-Aaru (sḫt-jꜣrw) - Os Campos de Juncos


Agricultura em Sekhet-Aaru
no Papiro de Nakht, da 18ª
Dinastia.
   As almas que conseguem percorrer com êxito todo o Duat chegam ao Salão das Duas Ma'ati para o julgamento final, onde seus corações serão pesados na balança contra a pena de Ma'at, e precisarão recitar as 42 Confissões Negativas mediante os juízes divinos. Quem for considerado indigno é devorado pela entidade maligna Ammit e consumido pela escuridão (ainda que existam relatos de espíritos que sobrevivam e permaneçam no Duat se tornando ameaças) e os dignos se transformam em "Akh" (espírito luminoso), e continuam sua travessia até chegar em Aaru, os Campos de Juncos - mas não há garantia de êxito nessa última jornada, e para adentrá-lo, devem ser capazes de atravessar os portões protegidos por monstros e divindades menores ameaçadoras armadas com facas, variando entre 15 a 21 portões de acordo com o registro.
   No Livro da Vaca Celestial, que alguns trechos datam do Primeiro Período Intermediário (2181-2400), há uma referência a Atum-Ra criar os Campos de Juncos após decidir que não irá destruir suas criações humanas. Os Campos de Juncos são compostos de ilhas férteis que pode ser considerada uma versão idealizada do Nilo em seus períodos férteis - e o próprio Aaru é considerado o Ka do Delta do Nilo (leia mais sobre o Ka e as partes da alma aqui) - ideal para agricultura, caça e pecuária, onde os espíritos luminosos e dignos se reúnem em cidades e podem viver por toda a eternidade junto a Osíris, tendo uma vida similar à da Terra. Portanto, mantinham suas ocupações, como era o caso dos Faraós, que continuavam numa posição de liderança. Para "burlar" a necessidade de trabalhar eternamente, surgiu a prática dos ushabtis, pequenas estátuas em formato de trabalhadores que eram ativados magicamente para trabalhar pelo seu dono no pós-vida, enquanto ele pode gozar de uma eternidade tranquila e sem obrigações.
   Mas os espíritos luminosos que alcançavam o Aaru não estavam confinados a ele, e podiam interferir de maneira positiva ou negativa em relação aos vivos - para punir malfeitores, intervir em assuntos que os vivos requisitam, favorecer e abençoar seus congêneres e descendentes, ou se vingar de ofensas ou descaso com suas tumbas. Portanto, era de interesse comum que os mortos alcançassem o status de Akh, e as famílias não mediam esforços para garantir os ritos funerários adequados, oferendas e outros aparatos para garantir um Akh que intercederia por elas nos momentos de necessidade.

Sekhet-Hetep - Campo das Oferendas


O pós-vida em Sekhet-Hetep,
extraída do Papiro de Anhai
c.1150b.C.
   Menções a um Campo das Oferendas, ou se traduzido literalmente, Campo da Paz, também aparece em alguns escritos, por vezes se referindo ao Aaru, e em outras dando a entender que se trata de um outro local, um plano à parte onde Osíris também reside. Em certas descrições, é citado como sendo o berço de nascimento dos Deuses. Por exemplo, no spell 77 do Livro dos Mortos para que o falecido se transmute em um falcão de ouro, são citados dois Campos: "Estou completo como o belo falcão de ouro sobre o poleiro da garça, cujas palavras Ra vai para ouvir diariamente. Eu sento dentre esses grandes Deuses do Ceu-água, os dois campos de Hetep estão dispostos para mim em minha presença".
   O Sekhet-Hetep é descrito com mais detalhes nos Textos das Pirâmides, onde muitos spells fazem menção às suas características geográficas - incluindo medidas de distância metafóricas, distritos, caminhos e locais para oferendas, que são de longe as localidades mais referidas nesse plano, ocorrendo nos spells 2, 6, 7, 8, 22, 23, dentre outros.
   Esse plano possui muitas descrições de ilhas específicas e divisões, como em uma spell do Livro dos Mortos no Papiro de Nebseni que indica que o local de reencontro entre as almas e seus entes amados se dá na ilha de Qenqenet: "O Qenqenet, eu adentrei em ti, e eu vi Osíris (o pai), e eu vi minha mãe, e me uni [à minha esposa]". Para maiores informações, recomendo as leituras abaixo que serviram de base, em especial o livro de E. A. Wallis Budge, The Egyptian Heaven and Hell.

Referências
- Imagining the Beyond: The Conceptualization of Duat between the Old and the Middle Kingdoms - Silvia Zago
- Religion in Ancient Egypt: Gods, Myths, and Personal Practice - David P Silverman, John Baines, Leonard H. Lesko
- Magic in Ancient Egypt - Geraldine Pinch
- The Egyptian Heaven and Hell - E. A. Wallis Budge
- Contextualizing the Osiris Shaft at Rosetau (Giza) in Archaeological History - Nicholas Edward Whiting
- The Ritual Landscapes of the Field of Hetep - Peter Robinson

A ofertar Ib, e Ma'at a Yinepu, o Senhor do Duat,
   Alannyë Daeris

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